Descrição
"A RECONSTRUÇÃO DA FIGURA
Britto Velho pertence a uma vertente da arte que realiza um projeto contemporâneo a partir de um sólido sedimento de tradição. Ele escolheu ser pintor figurativo nos anos 70, quando a arte conceitual implodia o suporte e abria um campo fascinante de intervenção artística muito próximo da filosofia, com o cerebral se sobrepondo ao sensivel. Fazer pintura de cavalete naquela época de radicais transformações chegou a ser confundido com desinformação ou reação. Ou até mesmo apego a velhas (e rotas) bandeiras, desfraldadas nos anos 50 por antigos mestres em luta contra a abstração. Nada disso pertur-
bou as convicções de Britto Velho, que nunca negou descendencias, mas sempre deixou clara sua independencia.
Ao escolher a figuração, Britto estava muito longe dos que acham possivel forçar os ponteiros da História da Arte para trás. Mas tambem nao aderia aos simplistas que confundem tecnica com conteudo e linguagem com projeto. Suas opções foram baseadas em grande parte nas vivências proporcinadas por seu contato direto com a resistência politica dos artistas latino-americanos no exilio, quando foi morar em Paris. Manter a figura - para ele e muitos outros artistas deste continente de prepotências garantidas pela força das armas - era antes de tudo manter uma identidade ideológica e uma possibilidade de critica politica. Não por acaso, Britto Velho retornou de sua estada na Europa trazendo na bagagem uma serie de desenhos que domina
Reflexões e Variações. São figuras disformes, torturadas, tolhidas por linhas, perseguindo setas que forçam caminhos e constrangem movimentos. Tudo isso sem esquecer de observar o equilibrio delicado que separa a expressão artística do simples panfleto, integrando uma familia de artistas como Cienfuegos e Cuevas. Aos poucos, a figura assumiu o close, a musculatura facial se individualizou em areas recortadas por traços escuros e a fatura foi
adquirindo exímias veladuras de tons terra. O passo seguinte foi a explosão da figura e a reorganização desses fragmentos em anatomias insólitas que, aos poucos, vao incorporando pedaços de objetos. É nesse momento que as cores também explodem, assumindo tons vibrantes e combinações audaciosas, como uma reação à paisagem cinzenta de São Paulo, seu endereço de então. As figuras, cada vez mais definidas em seus contornos sobre superfícies chapadas, assumem características escultóricas. E acabam por saltar da tela para a tridimensionalidade, em recortes sobre madeira. O protesto politico cede lugar a uma utopia personalíssima: criar uma nova proposta de ser humano, redesenhar as relações interpessoais através de anatomias reinventadas. Um humor refinado e saborosissimo cria personagens de conotações eróticas, narizes fálicos, bocas dúbias. Bosch moderno,
cria seres e situações que não apontam para o pecado e o fogo dos infernos, mas para a diversão, o prazer e o riso. Erudito, ele não confunde seriedade com sisudez. E cada vez mais se afirma no cenário nacional como uma das mais sólidas contribuições gaúchas à pintura."
Angélica de Moraes
